Conto de Aqhat
O Conto de Aqhat [1] ou Epopeia de Aqhat [2] é um mito cananeu de Ugarit, [3] uma cidade antiga no que hoje é a Síria. É um dos três textos mais longos encontrados em Ugarit, sendo os outros dois a Lenda de Keret e o Ciclo de Baal.[4] Data de aproximadamente 1350 a.C.[5]
Embora o conto completo não tenha sido preservado, restam dele, segundo David Wright, "aproximadamente 650 versos poéticos", sendo a maior parte do seu conteúdo relativo a "performances rituais ou seus contextos"[6]. Os restos da história são encontrados em três tábuas de argila, faltando o início e o fim da história.[7] Essas tabuinhas foram descobertas em 1930 e 1931.[1]
O Conto de Aqhat foi escrito em Ugarit pelo sumo sacerdote Ilmilku, que também foi o autor da Lenda de Keret e do Ciclo de Baal.[8] Os três personagens principais do conto são um homem chamado Danel, seu filho Aqhat e sua filha Pugat. [9]
A narrativa
[editar | editar código-fonte]Primeira tabuinha
[editar | editar código-fonte]Danel é descrito como um "governante justo" (Davies) ou "provavelmente um rei" (Curtis), fazendo justiça às viúvas e órfãos.[10] Danel começa a história sem um filho, embora a falta de material no início da história não deixe claro se Danel perdeu os filhos ou se simplesmente ainda não teve um filho.[11] Em seis dias consecutivos, Danel faz oferendas no templo, solicitando um filho.[12] No sétimo, o deus Baal pede ao deus supremo El que dê um filho a Danel, com o que El concorda.[13]
As orações de Danel aos deuses são respondidas com o nascimento de Aqhat.[14] O agradecido Danel realiza uma festa para a qual convidou as Kotharat, divindades femininas associadas à gravidez. [15]
Uma lacuna aparece no texto.[16] Depois disso, Danel recebe uma reverência do deus Kothar-wa-Khasis, que agradece a Danel por lhe proporcionar hospitalidade.[3] De acordo com Fontenrose, o arco é dado a Danel quando Aqhat ainda é uma "criança"[17], enquanto Wright entende a história como sendo depois que Aqhat "cresceu". [14]
Depois de faltar uma parte do texto, a história recomeça quando Aqhat, descrito por Louden como "agora um jovem", está celebrando uma festa na qual várias divindades estão presentes.[18]
Aqhat, que agora tem o arco, receberia uma recompensa da deusa Anat se ele o desse a ela.[17] Anat oferece primeiro ouro e prata a Aqhat, mas ele recusa.[19] Ela então lhe oferece a imortalidade, mas ele recusa novamente. [19] Ao fazer suas ofertas, ela usa uma linguagem que provavelmente também implica uma oferta de natureza sexual.[20] Sua recusa é desrespeitosa: ele diz a ela para ir buscar seu próprio arco de Kothar-wa-Khasis e diz que as mulheres não têm nada a ver com tais armas.[18] Ele insiste que a imortalidade é impossível: todos os humanos devem morrer. [21] Anat, indignada, sai para falar com o deus supremo El.[16]
Segunda tabuinha
[editar | editar código-fonte]Anat reclama com El[3], de acordo com Wright "aparentemente para receber sua permissão para punir Aqhat".[14] A resposta inicial de El, se é que ele dá uma, não é legível devido à natureza danificada da placa, mas o tom de Anat passa de inicialmente respeitoso para ameaças violentas contra El.[22] Relutantemente, El concede permissão a Anat para fazer o que quiser.[23]
Anat então mata Aqhat.[24] O personagem que mata Aqhat pessoalmente é Yatpan, descrito por Vrezen e van der Woude como "um dos guerreiros de Anat"[25], mas por Pitard simplesmente como "um de seus devotos"[26]. Yatpan, magicamente transformado em águia, ataca Aqhat.[25]
Terceira tabuinha
[editar | editar código-fonte]Aqhat morre e Anat o elogia, expressando pesar por sua morte.[27] Embora o texto neste ponto seja fragmentário, ele indica que seu arco foi quebrado no incidente, e Anat também expressa sua angústia pela perda do arco, em termos ainda mais fortes.[28] Ela também lamenta que, devido ao assassinato, as colheitas em breve começarão a falhar.[29]
Enquanto isso, Danel, que não percebe que seu filho está morto, continua cumprindo suas funções judiciais no portão da cidade.[29] Sua filha Paghat percebe que uma seca começou e que aves de rapina estão rondando sua casa.[30] Ela sente uma tristeza profunda.[15]
Neste ponto, o texto contém linguagem sobre as roupas de Danel sendo rasgadas, indicando que Paghat rasgou as roupas de Danel ou que Danel rasgou suas próprias roupas em luto pela seca.[31] O texto mostra Danel orando por chuva, seguido de várias falas sobre uma seca que dura sete anos, de difícil interpretação.[32] Danel sai para os campos, expressando seu desejo de que as colheitas cresçam e expressando esperança de que seu filho Aqhat as colha[33], indicando que ele ainda não percebeu que Aqhat morreu.[34]
Neste ponto, dois jovens aparecem e informam a Danel e Paghat que Aqhat foi morto por Anat.[35] Vendo abutres no alto, Danel chama Baal, pedindo-lhe que derrube os abutres para que ele possa abri-los em busca dos restos mortais de seu filho.[36] Baal obedece, mas Danel não encontra restos mortais.[36] Danel vê o pai dos abutres e novamente faz com que Baal traga o pai dos abutres para inspeção.[37] Novamente, nenhum vestígio foi encontrado.[38] Finalmente, Danel invoca Baal para derrubar a mãe dos abutres, onde encontra os ossos e a gordura de Aqhat.[38] Danel enterra os restos mortais que encontrou às margens do Mar da Galileia.[39]
A morte injusta de Aqhat origina uma seca que dura anos.[25]
A irmã de Aqhat, Paghat, decide se vingar[40] matando Yatpan.[2]
Danel do conto ugarítico e o Danel mencionado no livro bíblico de Ezequiel
[editar | editar código-fonte]Através de indícios de ambos os textos e pela dificuldade cronológica em se estabelecer a hipótese tradicional, alguns estudiosos defendem que o personagem Danel do Conto de Aqhat e o Danel do mencionado na Bíblia em Ezequiel 14:14,20 e 28:3-4 (em diversas traduções, vertido como "Daniel") tenham a mesma origem cultural ugarítica, mesmo que o autor de Ezequiel não tenha tido acesso diretamente ao Conto de Aqhat.[41] Mesmo que o personagem do livro bíblico de Daniel já tivesse nascido na época da escrita do livro de Ezequiel, seria novo demais para ter tão grande fama de justo e velho demais para ainda estar vivo na época da queda da Babilônia sob os persas.[41]
Referências
[editar | editar código-fonte]- ↑ a b Pritchard & Fleming 2011, p. 134.
- ↑ a b Bienkowski 2010, p. 24.
- ↑ a b c Fontenrose 1974, p. 138.
- ↑ Wright 2001, p. 3.
- ↑ Arnold & Beyer 2002, p. 82.
- ↑ Wright 2001, p. 8.
- ↑ Fant & Reddish 2008, p. 235.
- ↑ de Moor 1987, p. 224.
- ↑ Smith 2014, p. 99.
- ↑ Davies 1985, p. 40.
- ↑ Wyatt 2007, p. 134.
- ↑ Wyatt 1999, p. 235.
- ↑ Wyatt 1999, pp. 235-6.
- ↑ a b c Wright 2001, p. 7.
- ↑ a b Curtis 2011, p. 139.
- ↑ a b Wyatt 1999, p. 236.
- ↑ a b Fontenrose 1981, p. 217.
- ↑ a b Louden 2006, p. 262.
- ↑ a b Coogan 1978, p. 28.
- ↑ Ackerman 2005, p. 61.
- ↑ Margalit 2011, pp. 305-6.
- ↑ Wright 2001, pp. 124-5.
- ↑ Smith 2014, p. 115.
- ↑ Day 1989, p. 23.
- ↑ a b c Vriezen & van der Woude 2005, p. 32.
- ↑ Pitard 2001, p. 51.
- ↑ Wright 2001, p. 139.
- ↑ Wright 2001, pp. 139-140.
- ↑ a b Gibson 1978, p. 25.
- ↑ Wright 2001, p. 159.
- ↑ Wright 2001, p. 162.
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- ↑ Pritchard 2016, p. 153.
- ↑ Wright 2001, p. 169.
- ↑ Smith 2014, p. 122.
- ↑ a b Arnold & Beyer 2002, p. 86.
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- ↑ Sapir 2015, p. 81.
- ↑ Bach 2013, p. 306.
- ↑ a b Day, John (1980). «The Daniel of Ugarit and Ezekiel and the Hero of the Book of Daniel». Vetus Testamentum (2): 174–184. ISSN 0042-4935. doi:10.1163/156853380X00047. Consultado em 17 de novembro de 2023
Bibliografia
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